Já por algumas vezes me senti observado. É fácil sentir-se assim em locais remotos, menos visitados, quase sem turistas. E embora o excesso de turismo seja uma fonte quase inesgotável de problemas, há muitos locais no planeta ainda autênticos.
É deste modo que me sinto nas zonas esquecidas do Uzbequistão. Mas sou observado ao pormenor, com rara ou nenhuma discrição. Fechados ao mundo durante incessantes anos, muitos habitantes desta antiga república soviética espantam-me com a sua curiosidade tribal.
Fazem-me perguntas, rodeiam-me para espreitar o meu telemóvel, atropelam-se quando um polícia me pede o passaporte na rua e sorriem ou interrogam-se com os carimbos que tenho colecionados no documento de viagem.
Apesar deste aviso, seria improvável esbarrar com um nível ainda superior de curiosidade Uzbeque. No entanto, quando decido abdicar de qualquer conforto físico e viajar num banco gasto em quarta classe, fico refém de uma carruagem inteira de cidadãos curiosos, durante nove horas.
Dos mais jovens aos mais velhos, dos passageiros ao staff. Em tudo semelhante ao que vivenciei em Myanmar.
Viajo em quarta classe, na mais singela das classes de viagem atribuídas aos comboios. Não há outra classe abaixo e existem várias acima.
Troca-se o conforto relativo de compartimentos de quatro camas por um mar de camas, de caras, de comportamentos, de cheiros (nem todos agradáveis).
Num dia mais ameno, como o que viajo, entre Beineu – no Cazaquistão – e a cidade Uzbeque de Nukus, as janelas abrem-se à paisagem para compensar a falta de ar condicionado. Mulheres, crianças, famílias, grupos de amigos, todos viajam nestas composições, onde o espaço (privado) é reduzido ao mínimo.
Quando primeiro entro no comboio, o choque cultural, de ambas as partes é imenso. Para mim e para todos os que me observam. E são muitos.
Não só sou o único viajante estrangeiro, ou estranho, neste compartimento. Sou, de facto, o único que segue a bordo deste comboio que, em velocidade reduzida, percorre várias centenas de quilómetros durante 12 horas.
A maioria (dos poucos) turistas que agora visitam este incrível país da antiga união soviética, ficam-se apenas pelo triângulo turístico Khiva, Bukhara e Samarcanda. Aqui, a estas zonas mais remotas onde me encontro, acorre um escasso número de visitantes.
A larga maioria fá-lo porque estão, como eu, numa viagem de longa duração e dispõem de tempo para lavrar a sua curiosidade por áreas menos observadas.
Se, por um lado, ao início nos estranhamos, depois ficamos entranhados. É inesquecível este movimento de mulheres que, em cada estação, em cada apeadeiro, apregoam, primeiro na plataforma e, depois, no interior do comboio os seus produtos.
A partir do momento em que estas pessoas aqui entram, denominar este espaço de carruagem de comboio será uma grave força expressiva.
Será antes um mercado ambulante, uma feira sobre rodas, um tipo de Praça de Espanha com janelas para uma paisagem mutável que rola e desliza.
É-me oferecido e a todos os restantes passageiros, primeiro: dumplings – servidos nas próprias tigelas de vidro que as vendedoras transportam – e que no final da refeição são recolhidas como parte do serviço.
Segue-se, minutos depois, uma mulher que vende umas apetitosas espetadas. Um a um vai retirando os pedaços de carne do espeto de metal e depositando-os num prato.
De um enorme tacho de metal, serve duas ou três grandes colheres de arroz e, também salada. E até não falta um pequeno frasco com o tempero. Há ainda quem venda pão – um elemento essencial na dieta Uzbeque. Há quem surja depois com água e refrigerantes e, finalmente, alguns doces e rebuçados.
Ao repasto, sucedem-se outros negócios: venda de vestuário, t-shirts, lenços, roupa para todas as idades, equipamento electrónico, perfumes e até brinquedos para crianças. T-shirts vendem-se e compram-se por 5000 SOM, comida e bebida por muito menos.
Quando é preciso pagar e não há SOM, moeda local, aparece um homem com molhos de notas para efetuar o câmbio de dólares, rublos da Rússia e Tenge, a moeda do Cazaquistão.
Estes vagões prestam um serviço completo, sem precisar de sair do lugar. Apenas o batalhão de vendedoras se move para cima e para baixo, da carruagem 1 à 9, durante intensas horas, até que o produto se esgote ou todos os estômagos estejam saciados.
Apenas vender na plataforma parece ser uma actividade ilegal. Constato, com envolvimento pessoal, este mesmíssimo facto minutos mais tarde. Na antepenúltima paragem desta longa viagem, em Kungrad, quatro ou cinco pessoas vendem melões a quem chega e parte nos comboios.
Há tempo suficiente para tudo isto, pois o transporte demora-se por ali durante 40 minutos. Mas esta azáfama e negócio não parece agradar aos polícias que vigiam as plataformas.
Com sonoros apitos, chamam a atenção dos comerciantes e obrigam-nos a parar o negócio.
Antes disso, porém, já um par de mulheres havia transportado dezenas de pesados melões, talvez com sete ou oito quilos para a plataforma paralela – fazendo-o da forma mais improvável – baixando-se e carregando-os por baixo do comboio e colocando-os na plataforma onde no, sentido inverso, um outro comboio iria parar minutos mais tarde.
Ante tudo isto, um outro polícia autoritário surge e ordena que a fruta da época seja dali retirada. Vendo-me tirar algumas fotos com o telemóvel de todo este movimento, aborda-me e obriga-me a mostrar-lhe as fotos e a imediatamente apagá-las.
Uma lembrança verídica de como este país que ainda há pouco tempo se abriu ao mundo ainda não está pronto para um turismo aberto, sem censura. Diz-me um dos funcionários ferroviários (como que aceitando aquela atitude autocrática): “Fotografar aqui não. Só em Khiva, Bukhara e Samarcanda“.
Claro que sim, contraponho eu, porque fotografar mulheres e homens ávidos por arrecadar alguns trocos para o seu sustento é um segredo de estado que o regime não está disposto a aceitar.
O Uzbequistão livrou-se do governante que dominou o país com punho de aço, mas continua a não haver no horizonte a marcação de eleições livres e democráticas, de uma imprensa independente e isenta ou de tribunais imparciais.
Entre o comboio 648 e o “comboio prisão” em que viajaria dias mais tarde entre Khiva e Bukhara, prefiro, claramente o primeiro. Neste último onde só viajam turistas.
Um roteiro típico e conveniente: sim. Sem paragens: sim. Confortável: sim. Turístico: sim. Autêntico: não. Contacto com locais: mínimo ou zero. Conveniente para as autoridades: absolutamente.
Vale-nos, a nós visitantes, um povo adorável e acolhedor.
De Portugal a Macau – crónica #21
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